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A Humanização da Medicina

A Humanização da Medicina

Paracelso, médico-alquimista, no século 16, afirmava que um bom médico deveria possuir o sentimento e o tato que lhe possibilitasse entrar em comunicação solidária com o espírito do paciente e a intuição necessária à compreensão de seu corpo e de sua doença. Um estudo feito na Inglaterra mostrou que 75% das informações que levam a um diagnóstico correto provêm de uma história médica detalhada, 10% do exame físico, 5% de algum simples exame de rotina, 5% de exames caríssimos e invasivos e 5% sem esclarecimento. Como fazê-lo numa conversa apressada que não vai além de cinco minutos? O primeiro contato deveria ser um aperto de mãos - saudação de boas-vindas, gesto de hospitalidade e sinal da disposição de aceitar alguém em sua qualidade de ser humano, de semelhante.

Os médicos cada vez pensam menos e mais se distanciam dos enfermos. A fé pueril na magia da tecnologia é uma das razões pelas quais se tolera a desumanização da medicina.

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Nunca esquecer que a enfermidade humilha e corrói o sentido do eu, tornando as pessoas sumamente vulneráveis às palavras do médico, de quem dependem para sarar e continuar vivas. Infelizmente os tempos mudaram e os médicos não poderiam ficar imunes às transformações advindas. Nos últimos decênios, assombroso foi o desenvolvimento tecnológico. Fascinados pela cintilação dos números e das figuras coloridas dos computadores, eles cada vez pensam menos e mais se distanciam dos enfermos. Nos esforços profissionais de saciar o imenso complexo médico-industrial, os pacientes quase sempre são ingênuos cúmplices. A fé pueril na magia da tecnologia é uma das razões pelas quais se tolera a desumanização de medicina. Multiplica-se o número dos procedimentos suscetíveis de produzir complicações em potencial e transformar cada doente em eventual adversário, com o surgimento crescente dos processos desenvolveu-se a medicina defensiva.

 

O modelo vigente de ensino da medicina foi estruturado no início do séc. XX por Abraham Flexner,que propôs a aplicação de regras cartesianas como norteadoras da formação médica. Privilegia-se o conhecimento fragmentado de acordo com percepções específicas de diferentes áreas do saber médico, desconsiderando a óbvia inseparabilidade entre as partes e a totalidade do ser humano. Divide-se a unidade complexa da pessoa em partes cada vez menores do domínio científico. Assim nasceram as disciplinas do curso de medicina que passaram a gozar de total autonomia para construir suas árvores temáticas.

 

Dividiu-se o território representado pelo corpo humano em inúmeros pequenos lotes de
conhecimentos, e seus donos, no dizer de Morin, passaram a ser "como lobos que urinam para
marcar seu território e mordem os que nele penetram". Quaisquer pequenas propostas de
mudanças na grade curricular encontram enormes resistências por parte dos donos dos lotes,
professores de especialidades que transformaram a educação médica numa complexa empresa de
difícil administração e que não mais atende às questões impostas pela acelerada acumulação de
conhecimentos científicos.
Em conseqüência desse modelo pedagógico obsoleto, impõem-se aos estudantes cada vez mais
conhecimentos técnicos oriundos das disciplinas acadêmicas, onde as informações são expostas
sem qualquer preocupação de oferecer-lhes a necessária síntese que lhes permita melhor
compreender o ser humano biográfico.

A filosofia desse modelo acadêmico acolhe o objeto e não o sujeito, o corpo e não o espírito, a quantidade e não a qualidade, a causalidade e não a finalidade, a razão e não o sentimento, o determinismo e não a liberdade, a essência e não a existência. O predomínio do conhecimento fragmentado gerado pelo clássico modelo das disciplinas inviabiliza a percepção da integralidade do ser humano, que sempre será a um só tempo biológico, psicológico, cultural e social. Esta unidade complexa é desintegrada na formação acadêmica que considera a disciplina como unidade de medida. Dividimos o indivisível.

Como apreender o global, o multidimensional, o complexo e organizar o conhecimento para melhor
cuidar do ser humano, protagonista central de qualquer iniciativa da ciência? É a indagação
apresentada por Morin no que ele denomina "os princípios do conhecimento pertinente". Na
resposta à questão formulada, o pensador francês resgata ensinamento de Pascal contido em sua
conhecida obra Pensées:
"Sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas ou ajudantes, mediatas e imediatas e
sustentando-se todas por um elo natural que une as mais distantes e as mais diferentes, considero
ser impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, tampouco conhecer o todo sem conhecer
as partes".

A comunidade acadêmica da atualidade é formada por um conjunto de especialistas. As linguagens dos diferentes núcleos de saber são tão herméticas que sequer o exercício interdisciplinar é factível, pois perderam-se os elementos essenciais para o diálogo. A universidade que pretendia a universalidade transformou-se num campo cultivado por incontáveis sementes de pequenos saberes que geram árvores cujas raízes jamais se entrelaçam. Uma enorme Torre de Babel flutuante sobre o tumultuado oceano de sofrimentos da humanidade.

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Antes de mais nada, é imprescindível reconhecer o perverso legado do séc. XX, caracterizado pela
extrema racionalização da ciência que apenas considera o quantitativo e ignora o qualitativo,
menosprezando o ser humano em seus sentimentos, sofrimentos, alma. Há que libertar-se,
sobretudo, da escravidão da máquina, fazendo-a complementar ao raciocínio clínico e não
instrumento soberano para determinar tomadas de decisões.

Qualquer médico sabe por experiência própria que uma doença raramente é orgânica ou psíquica, ou social ou familiar. O profissional sabe que ela é orgânica e psíquica, social e familiar. Todos os sintomas formam um complexo conjunto de diferentes instâncias, quer seja orgânica, psicológica, social ou familiar.Quando um paciente procura atendimento médico, invariavelmente está buscando por cuidados
que não se limitam simplesmente a livrar-se de um mal-estar circunstancial. A relação médicopaciente
nunca deixará de ser interação intersubjetiva experimentada por duas pessoas e, por
mais assimétrica que seja, somente será eficaz se for conduzida com acolhimento, escuta-resposta
e esperança de cura para o que sofre.
Os sintomas que trazem o paciente ao médico carregam sempre uma expressiva parcela de
opacidade. O que estará por trás da cefaléia persistente ou da dor precordial daquele jovem
bancário? Sendo 150 x 100 a pressão arterial observada, será suficiente o diagnóstico de
hipertensão arterial? Prescrever droga hipotensora para corrigir o índice anormal obtido será o
bastante para considerarmos realizado o tratamento?


Os sintomas são mensagens que precisam ser decodificadas. As descobertas da
psiconeuroendocrinoimunologia testemunham que os seres humanos constituem uma realidade
complexa de integração entre sensação, percepção e representação. O modelo reducionista
adotado pela medicina cartesiana tornou real a improvável linearidade entre sintoma, índice
esfignomanométrico e a doença daquela pessoa. Outrossim, a constatação de índice pressórico
anormal desperta no médico dúvidas que o fazem solicitar inúmeros exames, tais como
monitorização ambulatorial da pressão arterial, dosagem de catecolaminas séricas e exame ultrasonográfico
do abdome na busca da etiologia da enfermidade. Raramente, porém, são valorizadas
variáveis do entorno social e familiar.
Percebido como objeto, o paciente é investigado exaustivamente em busca da identificação do
desequilíbrio biológico que justifique a hipertensão arterial. Arte muda consistente em reconhecer
uma enfermidade apenas através de variáveis mensuráveis. Esse modelo está muito distante
daquele proposto por Gaillard para a consulta médica - o qual aponta seis etapas necessárias para
caracterizá-la. A primeira seria o acolhimento, seguida de anamnese e exame físico. As três
últimas etapas seriam: o diagnóstico, a prescrição e a separação. O maior obstáculo para o
cumprimento das mencionadas etapas, além da formação cartesiana, transparece claramente na
indignada questão apresentada por muitos médicos: "Diante do baixo montante de nossos
honorários, considera verdadeiramente que possamos arranjar tempo para todas essas coisas?"
(14). Desafortunadamente, a assistência médica hoje praticada aponta para a cruel realidade que
pode ser assim resumida: atender o paciente em cinco minutos, prescrever qualquer droga e
desfazer-se o mais rápido possível desse incomodo e mal pago compromisso. Médico e paciente
fisicamente tão próximos e afetivamente tão distantes sequer se olham ou se tocam. Em verdade,
sequer se respeitam.
Pratica-se, desse modo, o mais perverso modelo de medicina cega e surda. Cega, porque
limitando-se a compreender a doença apenas como pobres variáveis anatômicas e/ou bioquímicas
não enxerga o ser humano como ele verdadeiramente o é. Surda, porque o paciente não sendo
acolhido como sujeito é impedido de manifestar-se como pessoa.


"Onde há amor ao enfermo (philanthrôpíê) há também amor à arte (philotekhniê)", proclama um
famoso preceito hipocrático. A vinculação entre o profissional de saúde e o paciente, que o ato
médico impõe, é resultado de dois movimentos que se completam. O paciente que procura o
profissional e o médico que acolhe o enfermo. Ambos são qualitativamente distintos entre si, mas
Hipócrates encontrou uma única palavra para descrever este momento: "philia", que pode ser
traduzida como amizade, amor, solidariedade, compaixão. Para Lain Entralgo, este sentimento,
necessariamente, deverá estar presente em quaisquer precedimentos diagnósticos e/ou
terapêuticos. Recorda, a propósito, o grande clínico espanhol nas candentes palavras de Marañon:
"Yo no he tenido, en toda su transcendencia, idea del valor del elemento constitucional en
medicina, como cuando hube de leer mis primeras historias clínicas: aquellas recogidas con tanta
minucia, pero con tan mal método, en los últimos años de los estudios médicos y en los primeros
de la vida profesional y hospitalaria. Se describían en ellas los sintomas, los análisis (químicos y
bacteriológicos) y, a veces, las lesiones, es decir, la enfermedad; pero el enfermo no estaba allí. Ni
una alusión a cómo era la persona que sustentaba la enfermedad" (15).

O século XX tornou real o mais extraordinário desenvolvimento da tecnologia biomédica, ao
mesmo tempo em que, paradoxalmente, fez reduzir a credibilidade devotada aos profissionais de
saúde. Os pacientes confiam na medicina tecnológica e desconfiam do médico. Consideram como
indiscutíveis as informações fornecidas pelos equipamentos e depreciam as avaliações pessoais
do profissional. Na mesma proporção em que a tecnologia cresce em importância, decresce o
prestígio do médico enquanto profissional com aptidão para estabelecer juízos diagnósticos e
ajudar as pessoas enfermas a tomarem decisões. Médico e paciente pouco se olham, ambos
cativos e fascinados pela tecnociência. Junte-se a isso a presença de empresas de medicina de
grupo, ávidas por lucros, profissionais mal preparados, instituições de ensino guiadas
exclusivamente por interesses financeiros e teremos, como resultado, o caos que impera na
assistência médica do país.


Aparelho formador precário, médicos mal formados, tecnolatria, baixa remuneração profissional e
empresas que buscam dividendos econômicos mas não a saúde das pessoas constituem os
ingredientes desse indigesto banquete que nos é servido.
Como resgatar a verdadeira philia hipocrática numa sociedade que não prima pelo cultivo de
valores éticos?
Lain Entralgo propõe três princípios fundamentais para reaproximar médico e paciente numa
relação harmoniosa e cooperativa:
· * Princípio da máxima capacidade técnica - o médico precisa ter esmerada formação profissional
que o habilite a utilizar com sensatez todo o instrumental técnico oferecido pela ciência;
· * Princípio da obra bem feita - o médico deverá utilizar sua capacidade intelectual e conhecimento
técnico tendo como único guia moral o bem do paciente;
· * Princípio da autenticidade do bem - em situações de conflito, deve o médico atender unicamente
o autêntico interesse do paciente (16).
O que explica mas não justifica
O Conselho Federal de Medicina (CFM), a Federação Nacional dos Médicos, a Associação Médica
Brasileira e a Fundação Oswaldo Cruz publicaram, em 1996, um interessante documento com o
título Perfil dos médicos no Brasil. O volume IV, relativo aos dados colhidos no estado do Paraná,
apresenta os seguintes resultados:
- 68,4% dos médicos têm três empregos, enquanto 31,6% apresentam-se em quatro ou mais
atividades;
- 88,1% dependem, para subsistência pessoal e/ou familiar, de rendimentos auferidos de
convênios com empresas de saúde, medicina de grupo ou cooperativas médicas;
- 82,8% declaram sofrer acentuado desgaste físico e mental no exercício profissional;
- 65,5% manifestaram-se a favor de greves da categoria, sendo que 5,3% entenderam que nessa
circunstância deveria ser suspenso até mesmo o atendimento a casos de emergência.
Estas são as palavras finais do documento: "Neste cenário pouco favorável aos médicos, o futuro
da profissão é visto, pela maioria, com um forte sentimento negativo, refletindo o
descontentamento e a falta de perspectivas profissionais que ora se apresentam para o médico
brasileiro" (17).
No ano seguinte, como decorrência desses preocupantes referenciais o CFM realizou o "Seminário
Internacional - Profissão Médica". Por ocasião desse evento, assim se expressou o presidente da
Associação Médica Brasileira: "(...) Qualidade no atendimento também foi um outro assunto
importante ressaltado. O que está acontecendo com os médicos em todo o Brasil, há dois ou três
anos? Na medida em que ele atendia a dez consultas pelo valor que, teoricamente, naquela época,
ainda era bom e que agora está absolutamente deflacionado, o médico escolheu uma alternativa
muito mais cômoda para si: ele não reage, não diz que não vai atender, então, preferiu dobrar o
número de atendimento em seu consultório, dos convênios, para ter um resultado financeiro
adequado. Com isso a qualidade cai. Não há possibilidade de o médico, que normalmente atendia
dez pacientes, num horário, passar a atender vinte pacientes. Isso reflete diretamente na
qualidade" (18).
Em 1998, o CFM publica a obra Os médicos e a Saúde no Brasil, onde pode-se ler a seguinte
informação:
"Se apenas caudatário ou fator gerador da crise, não importa, o fato é que o processo de formação
dos médicos na sociedade contemporânea se vê acuado por desafios imensos. As bases
tecnológicas da prática, verdadeiro pilar da formação médica atual, enfrentam o dilema de
produzirem pouco benefício para a maioria da sociedade, alijada que está do acesso aos mesmos
ou os recebendo apenas marginalmente. O apelo individualista, calcado na relação médicopaciente
inspirada no juramento hipocrático e gerador de um modelo artesanal de prestação de
serviços de indiscutível eficácia em épocas passadas, transformou-se em verdadeiro anacronismo.
A medicina contemporânea é fortemente intermediada em termos institucionais, burocráticos e
econômicos e as escolas médicas parecem não se dar conta de tal fato, realizando suas atividades
docentes e assistenciais como se os tempos ainda fossem outro" (19).
Esses dados, extraídos de pesquisas realizadas pelo CFM em três anos consecutivos (1996 a
1998), falam por si mesmos. Desconsiderá-los, quando se discute humanização no atendimento
médico, seria tentar tapar o sol com a peneira, o que em nada contribui para encontrar soluções
satisfatórias para o problema.
Fundamental, porém, é ter muito claro a consciência de que a atual desvalorização da profissão
médica quiçá seja argumento para explicar, sem contudo justificar, atitudes de desrespeito a
pessoas humildes - essas, sim, as vítimas maiores das injustiças sociais desse insensível modelo
de sociedade.

Se o processo de globalização parece inevitável e caminhamos rapidamente para a cínica
realidade do Estado Mínimo, onde prevalece a lei do livre mercado e a regra do "salve-se quem
puder", é dever das pessoas responsáveis preservar uma moralidade mínima.
Se o governo, a pretexto de ganhar maior agilidade em suas ações, pretende eximir-se de
responsabilidades fundamentais como segurança, educação e saúde, não podem os profissionais
universitários, mormente os médicos, deixar de identificar com clareza quem são os algozes e as
vítimas dessa sociedade que globaliza prejuízos e privatiza lucros.
É claro que seria suprema ingenuidade exigir do médico, hoje, a postura quase sacerdotal que
marcou indelevelmente a profissão em épocas passadas. Parece óbvio, porém, que nenhum
profissional tem o direito de olhar somente para o seu próprio umbigo, esquecendo-se do mundo
ao redor, onde grassa a injustiça e a falta de solidariedade aos mais fracos.
Em suma, se o médico considera que não está sendo adequadamente reconhecido em seu
exercício profissional, que a remuneração percebida por seus procedimentos é vil, tem todo o
direito de buscar soluções para estas injustiças. O que parece incorreto é destratar pessoas
fragilizadas por doenças e culpabilizá-las por seus pesares e frustrações profissionais.
Os Conselhos de Medicina dedicam demasiado tempo em atividades judicantes relativas à
insatisfatória relação médico-paciente. Quase que invariavelmente a causa central das
sindicâncias e processos éticos repousa no comportamento inadequado de profissionais que
tratam pessoas enfermas de maneira desrespeitosa.


Schraiber apresenta uma sensível apreciação de Peguinot sobre o ato médico, que é descrito
como "colóquio singular", uma espécie de duo que não comporta no silêncio do consultório senão
dois personagens: o médico e o paciente. Trata-se, diz o autor, de encontro contido no espaço e
no tempo, que se inicia por um relato de sofrimento, continua com o exame físico e termina em
esperança de cura. Percebe-se uma unidade de tempo, lugar e ação. Esse encontro, bem o
sabemos, diz Peguinot: "É aquele de uma técnica científica e de um corpo, mas prefere-se
acreditar que seja essencialmente de duas almas"(20).
Poucas profissões gozam do privilégio de poder compartilhar e mitigar a dor e o sofrimento
humano, como a medicina. O ato médico não pode jamais ser animado por atitude de desrespeito
ou desamor a alguém, pois o protagonista do mesmo é um ser humano que não pode ser tratado
como objeto, pois é um fim em si mesmo e dotado de dignidade, como nos ensinou Kant. Esse ser
que Boff descreve como sagrado, sujeito de história pessoal e elemento essencial na construção
de uma sociedade mais humana, que é capaz de conviver e dialogar com os mistérios do mundo,
que pergunta por um último sentido da vida e comunga com o outro vendo nele a imagem do
Criador. A essência do ser humano, portanto, repousará sempre no cuidado (21).
O resgate da arte de bem cuidar
Frente às dificuldades apontadas fica evidente a descaracterização da arte de bem cuidar, o que
nos impõe a tarefa de resgatá-la, já que sem ela a medicina perde o sentido.
Por outro lado, é indispensável reconhecer que o individual e o coletivo fazem parte do mesmo
organismo, são membros articulados do mesmo corpo. Homem e sociedade são entidades
inseparáveis. Ambos respondem aos mesmos estímulos e, simultaneamente, padecem dos
mesmos sofrimentos.


Há que se ter presente, ainda, que a sociedade tardocapitalista não privilegia o cuidado com a
vida, o bem comum e a solidariedade. Somos guiados pelas regras do livre mercado, na busca
incessante da obtenção de vantagens pessoais. Prevalece a lógica da acumulação de bens e o
desprezo pelo outro. Assim, pessoa humana, fauna, flora e todas as riquezas que nos cercam
perdem seus valores intrínsecos e transformam-se em produtos a serem comercializados no
grande balcão de negócios em que se transformou a sociedade do século XX.
Torna-se dispensável elencar os prejuízos irreversíveis que esse modelo impôs à vida no planeta,
basta considerar os dados fornecidos pela Comissão Mundial do Meio Ambiente da ONU, em
1992. Na ocasião, estimava-se que a cada ano 6 milhões de hectares de terras produtivas
convertiam-se em deserto, o que significava perder, a cada 30 anos, uma área equivalente ao
território da Arábia Saudita. Anualmente, eram destruídos mais de 11 milhões de hectares de
matas, o que eqüivaleria perder, a cada 30 anos, uma superfície igual a da Índia (22).
O cientista norte-americano Kennet Baoulding descreve como "cowboy" o modelo capitalista de
economia baseado na abundância aparentemente ilimitada de recursos e territórios para serem
desfrutados e invadidos conforme a regra baconiana de escravizar a natureza, colocando-a a
serviço do homem. É o antropocentrismo irrefletivo, irresponsável e predatório (23).
A lógica de mercado orienta-se pela competição, e não pela cooperação. O mercado é tudo e nele
deve-se buscar a solução para os problemas da sociedade. Esse fundamentalismo confere
centralidade ao capital financeiro oportunista e especulador que arruina economias de países
emergentes e inviabiliza a vida autenticamente humana.
Nesse realismo perverso, os mais ingênuos poderiam indagar: o que isso tem a ver com os
cuidados à saúde do ser humano? Obviamente, tudo. As 500 empresas transnacionais
reconhecidas pela revista Fortune como as mais importantes em 1998 controlavam 2/3 do produto
interno bruto dos EUA e grande parte da economia mundial. Isso significa que 20% da humanidade
detinha 84% de toda a riqueza existente no planeta, enquanto que para os 20% mais pobres cabia
apenas 1,4% da mesma.


O que isso tem a ver com a saúde humana? Dados de 1998, da Organização Mundial da Infância,
mostram que aproximadamente 250 milhões de crianças trabalham em condições insalubres,
muitas delas com idade inferior a cinco anos. Na América Latina, três entre cinco crianças
trabalham; na África, uma em cada três; na Ásia, uma em cada duas (24).
Considerando o microcosmo representado pelo ser humano, percebemos que o longo império do
cartesianismo na ciência baniu da vida o qualitativo e impôs o quantitativo. O último estágio de
aperfeiçoamento desse modelo, segundo Max Weber, é representado pelos "especialistas sem
espírito, sensualistas sem coração, e essa nulidade imagina ter alcançado um nível de civilização
nunca atingido" (25).
Todos os médicos reconhecem não haver enfermidade que se manifeste fora de um temperamento
pessoal, de vivências e experiências já vividas, e mesmo que ela se apresente com fisionomia
semelhante no conjunto, seus traços sempre mostram, nos detalhes, colorações singulares do ser
humano biográfico. O doente é a doença que adquiriu traços singulares, dada com sombra e
relevo, modulações, matizes e profundidade - e a tarefa do médico, ao descrever a enfermidade,
será a de reconhecer esta realidade viva (26).
Cada pessoa adoece de maneira particular, não importando como os profissionais de saúde a
classifiquem em tal ou qual categoria nosológica. Cada consulta médica é única na construção
interpessoal médico-paciente. Para um paciente individual, não há "o melhor" tratamento a ser
prescrito pois, sempre, a melhor escolha dependerá de seus próprios juízos e valores e da
interação com seu médico. Encontrar "a melhor escolha" é o ponto central de rico exercício clínico
que obriga o médico a dominar conhecimentos e habilidades que reconhecidamente não são
oferecidas pelo modelo de ensino vigente. Não basta conhecer as últimas informações da medicina
baseada em evidências para proporcionar o melhor cuidado ao paciente. Um grande oncologista
norte-americano da atualidade salienta que quando médicos ou estatísticos adoecem, não
perguntam qual o grande estudo multicêntrico aplicável às suas enfermidades. A questão que
apresentam é: "Who is the best doctor for this problem?" (27)


Lain Entralgo assim descreve o sentimento do paciente com relação à sua identidade como pessoa
humana integral: "É meu corpo vivo que pensa, quer e sente". Aos médicos, como agentes no
binômio profissional de saúde-enfermo, sugere que em suas ações profissionais considerem o
ensinamento de Sartre: "A palavra é sagrada para quem a pronuncia e mágica para quem a ouve "
(28).
Algumas diretrizes sobre parâmetros imprescindíveis na formação dos estudantes de medicina são
apontadas pela Comissão Institucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM):
*· adquirir habilidades e conhecimentos que lhes permita identificar os problemas básicos de saúde
do indivíduo e da sociedade;
*· ter flexibilidade profissional que lhes permita ser eficientes e considerar os valores, direitos e a
realidade socioeconômica de seus pacientes;
*· aprender métodos científicos e postura ética que lhes permita tomar decisões adequadas que,
expressas no trabalho clínico, sejam eficientes e respeitosas ao ser humano e seu ambiente;
*· ter formação que lhes possibilite aprender fazendo e aprender a aprender, procurando
ativamente construir seus próprios conhecimentos (29).
Para os especialistas que percebem apenas suas áreas de conhecimento, ou seja, o pequeno
compartimento de suas disciplinas, resta o alerta de Marcuse, que descreve o homem
unidimensional como aquele que se especializou numa única linguagem e vê o mundo somente
por meio dela. Para ele (especialista) o mundo é só aquilo que os jogos de sua linguagem
registram como verdade. O resto é irreal.
Ocorre que, no mundo real, as pessoas praticam simultaneamente muitos jogos de linguagem:
jogos de amor, jogos de poder, jogos de saber, jogos de prazer, jogos de fazer, jogos de brincar,
jogos de sedução e, até mesmo, jogos de adoecer. Assim é a vida, uma interminável seqüência de
jogos, todos ocorrendo ao mesmo tempo. Percebê-la diferentemente é desconhecer sua essência,
e afinal o que é a medicina senão uma tentativa de compreender e auxiliar as pessoas a
prevenirem-se de enfermidades, sofrimentos e bem viverem suas próprias vidas (30).
Em conclusão, somente alcançaremos formar o médico pedido por Lown e resgatar a arte perdida
de cuidar quando estivermos preparados para compreender o ensinamento de Maimônides,
célebre médico do século XII, assim expresso: "Possa eu jamais esquecer que o paciente é meu
semelhante, transido de dor e que jamais o considere mero receptáculo de doença." Acima de
tudo, teremos de considerar a contundente questão apresentada por Lèvinas: "Como podem esses
sujeitos almejar um estatuto de humanidade e pertença se não se olham no rosto ou se olham com
tanta brevidade?" (31)